Praticar a comunicação não violenta, ouvindo o outro e focando nas necessidades do grupo, é essencial para a prosperidade das famílias empresárias.
A história do Instituto Comunicação Não Violenta é ao mesmo tempo uma história de vidas entrelaçadas, de autodescoberta e de relacionamentos que evoluem para alcançar milhares de outras pessoas. O entendimento de que é possível falar com outras pessoas sem violência e, ainda assim, ser eficaz, foi uma revelação para suas fundadoras – assim, nascia uma missão de vida. “Nos achávamos super evoluídas e super capacitadas para ter bons relacionamentos. Mas fomos percebendo que as coisas não ditas são tão ruins quanto aquilo que é dito de uma forma violenta”, conta Liliane Sant’anna, se referindo à sua amiga de faculdade, Nolah Lima, duas das 5 sócias fundadoras do Instituto.
Aprender a resolver essas questões nem sempre declaradas (e muitas vezes nem mesmo percebidas claramente) deixou claro para elas que essa seria uma jornada de vida para solucionar dores existenciais não apenas delas mesmas, mas de muitas outras pessoas em situação semelhante. E, afinal de contas, quem é que não deixa algo guardado dentro de si, fermentando até que se torna um problema muito maior? E quem é que, na correria do
dia a dia, não percebe o efeito negativo que suas ações, mesmo que tomadas com a melhor das intenções, tem sobre outras pessoas?
Com o tempo, também ficou nítido que praticar a comunicação não violenta não é simples. Afinal de contas, ser “não violento” não significa ser omisso. É necessário comunicar claramente seus incômodos, mas sem buscar o conflito.
Aprender a praticar a comunicação não violenta, dessa forma, se torna como o aprendizado de um novo idioma: uma atividade cheia de erros e acertos, que leva a rediscutir o papel de cada pessoa dentro do ambiente em que vive – e, de certa forma, repensar sua própria personalidade e visão de mundo.
A comunicação não violenta parte de um framework bem definido, baseado em 4 pontos: separar os fatos dos julgamentos, entender os sentimentos, entender as necessidades que estão por trás desses sentimentos e, por fim, fazer as solicitações de mudança, buscando gerar ações em cocriação com as outras partes envolvidas. Não é uma tentativa de convencer o outro a adotar seu ponto de vista – e sim uma forma de, a quatro mãos, encontrar uma saída para os conflitos trazidos pela situação atual.
Muito mais do que “vencer uma briga”, o que a comunicação não violenta propõe é desenvolver relacionamentos construtivos, baseados em ter energia, intenção e estrutura em tudo o que se diz para o outro. Quando isso acontece, as relações se fortalecem, seja na família, na sociedade ou nas empresas.
Muitas vezes, a comunicação não violenta vai na contramão do que se costuma fazer no cotidiano. Em vez de “resolver” uma questão rapidamente (normalmente frustrando boa parte dos envolvidos), fazer uma pausa para recalibrar os pensamentos e atitudes. Ou planejar melhor as reuniões, para que elas aconteçam de forma mais produtiva e valorizem o tempo de todos os presentes.
Nesta entrevista, Liliane e Nolah contam como foi a trajetória para a criação do Instituto Comunicação Não Violenta e como suas ações evoluíram para impactar mais de 150 empresas e mais de 10 mil pessoas em todo o Brasil.
Revista Gerações – Como nasceu o Instituto Comunicação Não Violenta?
Nolah – o instituto nasceu de dois grandes conflitos. Eu e a Liliane nos formamos em Administração de Empresas, éramos grandes amigas, trabalhamos na mesma companhia e decidimos sair para empreender. Quando a comunicação não violenta (CNV) apareceu na vida da gente, éramos sócias, há uns 4 ou 5 anos, em consultoria e treinamento sobre comunicação pessoal.
Liliane –as coisas que nos encantavam eram as mesmas e percebemos que havia muita conexão. Como atuávamos com comunicação pessoal, nos achávamos muito evoluídas, maravilhosas, acreditávamos que, com todo o estudo e formação que tínhamos, conseguíamos resolver conflitos em todas as áreas, desde o relacionamento com maridos e famílias até ajudar outras pessoas. Entre nós, achávamos que não havia nenhum conflito, mas havia uma questão das coisas não ditas, incômodos que ficavam e que nos faziam criar histórias na cabeça. Isso ficou muito claro quando eu fiz um intercâmbio na Austrália. Quando voltei, decidi que era preciso resolver – e despejei tudo em cima da Nolah. Foi quando conhecemos o conceito de (CNV), por meio da Jade Arantes, que hoje é nossa sócia no Instituto. Eu, que me achava um doce de pessoa, percebi que estava sendo violenta ao guardar anos de coisas não ditas e de repente pegar a Nolah desprevenida
com tudo o que sentia.
Revista Gerações – E de onde vinha esse conflito não resolvido?
Nolah – Meu perfil é muito executor: vou e faço, mas por muito tempo não dei atenção de como as pessoas se sentiam com o meu jeito de agir. Conhecer a CNV abriu uma camada de conversas que a gente não tinha e não sabia que precisava. Quando a Lili trouxe tudo aquilo, fiquei na defensiva, como é normal acontecer. Acabamos percebendo que tínhamos dores muito existenciais. A CNV foi uma virada de chave para a nossa sociedade. Aprendemos a ser muito mais honestas e empáticas, não só entre nós, mas com todo mundo. Foi transformador. No mesmo período, a Jade estava vivendo um conflito com o seu então sócio, com um processo de mediação que levou a um fim pacífico para a sociedade. E isso mostra que a CNV não leva necessariamente as relações a continuar, mas garante que tudo aconteça de forma não violenta, autêntica e cuidadosa. Com tudo isso, nos unimos a ela, à Cristiane Chaves, que é advogada; e à Flavia Amorim, outra amiga de longa data que tem um vínculo de irmã com a gente. Juntas, temos o propósito de viver a CNV e disseminar o conceito pelo Brasil.
Revista Gerações – O que tocou vocês no conceito de CNV?
Liliane – Em primeiro lugar, vimos uma simplicidade que tínhamos visto em outras práticas. Tem algo muito básico do ser humano na CNV, e que precisamos praticar sempre. A partir daí, toda nossa jornada tem sido uma tentativa de construir contextos que as pessoas pudessem praticar. Não são cursos, mas oportunidades de colocar a CNV em prática, trazendo novas possibilidades de comunicação para as pessoas.
Revista Gerações – Quais são os pilares da CNV?
Nolah – A CNV tem três grandes pila-res. O primeiro são as crenças e a visão de mundo, que nos convidam a olhar para as coisas a partir da não violência, que é a ideia de não causar dano a ninguém e, ao mesmo tempo, sustentar a sua verdade. A ideia é transformar
a sociedade diminuindo a violência explícita ou implícita, como casos de culpa, medo e vergonha. O segundo ponto são olhares para as dinâmicas de poder entre as pessoas nas relações, nos grupos e nas sociedades. Aprendemos há 8.000 anos a viver o poder coercitivo, em uma divisão entre quem tem poder e quem não tem – o que leva às questões de comando e controle que ainda imperam nas empresas. A CNV muda o olhar para um poder compartilhado entre as pessoas. O terceiro pilar é a busca por empatia e conexão a partir da linguagem. Muito do que influencia dinâmicas de poder e visões sistêmicas é nossa linguagem, é como conversamos com os outros e com a gente mesmo.
Liliane – A CNV procura nos conectar com outras pessoas, a partir de 4 pontos: observar, separar fatos de julgamentos; entender sentimentos; entender as necessidades que estão por trás desses sentimentos; e então fazer pedidos, gerando ações que respondem a essas necessidades a partir da cocriação.
Revista Gerações – Por que não é simples praticar a comunicação não violenta?
Liliane – Vale pensar na CNV como se fosse um idioma. Quando estamos aprendendo uma língua nova, é difícil traduzir o que alguém está nos dizendo – e ainda mais difícil expressar exatamente o que estamos sentindo ou o que precisamos. Com a CNV, é preciso treino para traduzir em sentimentos e necessidades o que estamos escutando das pessoas. Ou mesmo expressar nossos próprios sentimentos e necessidades. É por isso que o tamanho da dor influencia nessa jornada da CNV. Quanto mais dor temos acumulada, mais precisamos decodificar nossos sentimentos e identificar as necessidades por trás deles. Como vivemos em uma sociedade que caminha na direção de uma comunicação violenta, em que uma parte procura colocar sua posição como certa diante da outra, precisamos deixar de acessar nosso “modo automático”, nossos padrões mentais. Por isso, a CNV precisa se tornar uma prática diária, pensada e organizada.
Nolah – Usando essa mesma analogia do idioma, é um idioma para todos os contextos, mas diferentes contextos exigem diferentes níveis de proficiência. Por isso é preciso conhecer a gramática desse idioma e criar vocabulário, para ficar mais seguro e confiante na hora de tratar de conversas mais desafiadoras.
Revista Gerações – Como o conceito de CNV pode ser aplicado às famílias empresárias?
Nolah – Existem casos mais simples e outros mais complexos. Por exemplo: uma família empresária que perde repentinamente um líder, o processo de substituição exige criar uma série de laços de confiança que não estavam presentes até então. A partir da CNV, podemos trabalhar a compreensão mútua para que os integrantes da família passem a se importar mais uns com os outros. Por isso é importante ter cuidado com as palavras, especialmente em momentos de mudanças ou conflitos.
Liliane – A CNV tira a sensação de que a família empresária vive um cabo de guerra e transforma a comunicação em um ato de construir junto. Todos juntos contra um problema, criando uma solução que atenda da melhor maneira à necessidade de todos. A questão é que, quanto maior a história, o convívio e a dor, mais difícil será a solução – daí maior a importância de aplicar a CNV para superar o problema.
Nolah – Quando conseguimos dar nome às coisas, conseguimos resolver os problemas mais rapidamente e saímos da disputa para uma relação construtiva. É preciso ser consciente na comunicação, com energia, intenção e estrutura. Quando isso é feito de forma intencional, traz mais força para as relações familiares. Essa é uma prática que parte de uma autoconexão e exige sondar sentimentos e necessidades para evitar retrabalho, stress e quebras de confiança. Em uma reunião, por exemplo, pode ser melhor fazer uma pausa para organizar os sentimentos e pensamentos, ou planejar melhor as reuniões para que elas gerem mais eficiência e efetividade. É andar devagar para caminhar rápido.
Liliane – Aprender tudo isso faz parte daquele vocabulário de que falamos antes. Todos os dias, precisamos criar repertório para resolver as questões, processar tudo aquilo, manifestar o que desejo e reconversar, sempre com foco em ouvir e aprender mais. As pessoas que incorporam a CNV em suas vidas ensinam pelo próprio exemplo.
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